O DIREITO DE RETORNO (PARTE 1)

O DIREITO DE RETORNO (PARTE 1)

Na noite de 8 de Av, há 527 anos, os últimos judeus de Espanha foram deportados. Aqueles que já se tinham convertido ao cristianismo não foram autorizados a deixar o país, e muitos outros foram mortos pela Inquisição. Nas últimas décadas, centenas de anos após os acontecimentos que mudaram totalmente a comunidade judaica espanhola, muitos dos descendentes destes anussim descobriram a origem de alguns dos seus estranhos costumes, que foram transmitidos de geração em geração. Num processo emocionante, estão lentamente voltando às suas raízes e ao judaísmo. Esta é uma viagem histórica fascinante…

Diana Stern

Foto de Avital Hirsch

Este artigo foi originalmente publicado na revista פנימה עלמה

Espanha do século XV. Os mesmos becos que recentemente tinham absorvido os ensinamentos de líderes mundiais durante a Idade de Ouro tornaram-se um lugar estranho e perigoso para os judeus. Escapar, converter-se ou morrer em agonia – estas eram as três opções disponíveis para os judeus durante a misteriosa era da expulsão de Espanha. Mais de 500 anos se passaram desde aqueles dias, e ao redor do mundo ainda existem remanescentes raros de antigas comunidades judaicas, alguns deles sem conhecimento da magnífica linhagem à qual pertencem.

Sonhos de España

A comunidade judaica espanhola era a maior e mais poderosa comunidade judaica do mundo. Em 1391, a comunidade começou a sofrer perseguições e pogroms, muitos judeus foram assassinados e outros foram forçados a converterem-se ao cristianismo, sendo estes últimos chamados anussim. A Inquisição em Espanha culminou em 1492 com a deportação dos judeus que ainda ficavam no reino. Na noite de 8 de Av, ou 31 de julho de 1492, os quatro meses concedidos aos judeus para deixar a Espanha chegaram ao fim.

– Muitos não sabem que apenas foram deportados aqueles que ainda eram judeus. Todos aqueles que  tinham sido previamente convertidos ao cristianismo não puderam deixar o país – explica Michael Freund, presidente e fundador da Shavei Israel,  e que dedica sua vida aos descendentes de anussim e às Tribos Judaicas Perdidas, ajudando-os a retornar às suas raízes.

– Milhões de pessoas em todo o mundo que falam espanhol e português são descendentes de judeus cujos antepassados foram convertidos à força – revela Freund. Nos últimos anos, cada vez mais descendentes de famílias judias estão descobrindo as suas raízes e procurando alguma conexão com o povo de Israel. – Alguns permanecem católicos devotos, mas o facto de os seus antepassados serem judeus intriga-os, intelectual ou emocionalmente, e alguns deles embarcam numa busca espiritual que os leva ao judaísmo.

– A Igreja Católica e a Inquisição esforçaram-se tanto para tentar retirá-los do nosso povo, reiteradamente e durante séculos. Nós também devemos investir energia na tentativa de trazê-los de volta – afirma Freund enfaticamente. A organização  fundada por Freund opera em mais de 12 países do mundo, com uma ampla gama de comunidades – desde os Bnei Menashe na Índia, passando pelos descendentes da comunidade judaica chinesa da cidade de Kaifeng, até aos Bnei Anussim da Colômbia, El Salvador, Chile, Espanha, Portugal, Sicília e sul da Itália. – Temos emissários que trabalham com as comunidades, ensinam Torá e fortalecem as pessoas interessadas.

Freund imigrou para Israel de Nova York em 1995. Em 1996, quando Benjamin Netanyahu foi eleito primeiro-ministro, trabalhou como vice-diretor no seu Departamento de Informação. No contexto do seu trabalho, chegou-lhe às mãos um envelope cor de laranja amassado, do nordeste da Índia, endereçado ao primeiro-ministro. O momento em que Michael Freund abriu o envelope e leu a carta que havia dentro tornou-se um momento decisivo na sua vida, que o levou a abandonar a política.

– Numa carta emocionante, os líderes da comunidade Bnei Menashe, no nordeste da Índia, falavam em serem descendentes de uma das dez tribos exiladas do país pelo reino assírio há 2.700 anos. Diziam o quanto queriam voltar para a sua terra natal, para Sião. No começo pensei que aquilo era completamente delirante, mas havia algo muito real naquela carta, por isso respondi-lhes.

Mais tarde, Freund revelou que, pelo menos desde a época de Golda Meir, os Bnei Menashe tinham apelado a todos os governos israelenses, mas nunca tinham recebido resposta. – Estabeleci contacto e conheci várias pessoas da comunidade. Eu vi que eles eram honestos, sérios, e realmente queriam ser judeus praticantes e viver em Eretz Israel.

Freund começou a investigar a fundo o fenómeno das comunidades judaicas remotas. – Comecei a viajar para todo o tipo de lugar e vi que a consciência judaica de muitas dessas comunidades ainda existia. Também vi que ninguém os está a ajudar e pensei, e ainda penso, que isso é um erro estratégico, tanto para o povo judeu quanto para o Estado de Israel. Decidi criar a organização Shavei Israel para ajudá-los.

– O judaísmo não é uma religião missionária e não estamos tentando colocar uma kipá na cabeça de ninguém – frisou Freund. – Aqueles que procuram uma conexão cultural com o povo de Israel: Nós tentamos ajudá-los, e aqueles que procuram uma conexão espiritual e estão interessados na conversão: nós também tentamos ajudá-los. Toda a gente tem que tomar a sua própria decisão, entender o que é melhor para si próprio, e só então entramos em cena. Como organização, também não convertemos ninguém. Deixamos a conversão para o beis din (tribunal de conversão). Nós apenas ajudamos.

Julgamento após a morte

Após a expulsão de Espanha, muitos judeus encontraram abrigo no vizinho Portugal, até que, em 1497, o rei de Portugal, D. Manuel I, pediu a mão de Isabel, filha dos Reis Católicos de Espanha, em casamento. A corte real espanhola impôs a deportação de todos os judeus de Portugal como condição para o casamento. Devido ao temor de que a economia do país fosse severamente danificada, já que os judeus constituíam cerca de 20% da sua população, o rei de Portugal escolheu uma solução diferente. Em vez de deportar todos os judeus, forçou-os de maneiras cruéis a converterem-se, sem permitir que deixassem Portugal. Arrastar as pessoas pelas ruas pelos cabelos para as batizar à força é apenas um exemplo de muitos dessa crueldade.

O relógio da História continuou a andar, Espanha e Portugal tornaram-se potências coloniais, e os Anussim chegaram a cada nova colónia. Esperavam fugir para o mais longe possível das garras da Inquisição, que constantemente perseguia os conversos que continuavam, em segredo, a manter as tradições judaicas.

O regime da Inquisição, tal como a Alemanha nazista, manteve registos muito detalhados. Nos arquivos da Inquisição pode ler-se sobre as buscas inabaláveis por qualquer um que ainda pudesse praticar em segredo costumes judaicos. No caso de haver rumores sobre pessoas já falecidas, a Inquisição enviava funcionários ao cemitério para desenterrar os restos mortais e levá-los a tribunal, onde era dada uma sentença de morte.

Apesar da dificuldade, medo e perigo, muitos dos anussim continuaram a manter em segredo a sua identidade e mantiveram o legado do seu povo. – Para mim, é incrível – enfatiza Freund. – Teria sido muito mais fácil para eles baixar o braços, desistir e assimilar-se, mas, com coragem e dedicação, continuaram a manter a sua identidade. Mesmo no século XVII, 200 anos após a expulsão de Espanha, houve julgamentos da Inquisição contra os anussim, apenas porque se descobriu que permaneciam devotos à Torá de Moisés.

– Sempre senti que o povo judeu e o Estado de Israel têm uma obrigação moral, histórica e religiosa de lhes estender a mão aproximá-los a nós. Os seus antepassados foram retirados do nosso povo contra a sua vontade e no entanto, apesar de todos os riscos, continuaram de algum modo a apegar-se à sua identidade judaica.

Continua…

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